Uma faixa comprida fixada nas grades da rua ocultou o escritório da SABESP ao fundo, com letreiro e desenhos num azul que pretendia imitar a cor d’água, mas era gélido, pálido. Esse pano amarrado queria, numa ânsia de afogado, nos lembrar d’água. Pra essa gente que aqui habita a vendo todo santo dia aos seus pés feito língua quilométrica de mar ou então, molhando seu corpo todo dum suor quente e grudento desses trópicos tão verdes de vorazes insetos vampiros, esse grito agoniado virou miado, chiado; minguou.
Da tribuna da câmara, encerrando sessão que fez e entrou pra história, Guará do Partido Verde, num discurso agendado, saudou o dia que essa faixa da SABESP se encompridava em celebrar: o dia mundial da água, dia 22 de março. E a pressurosa publicidade oficial também fez sua parte no tempo de sonho de viver ilhabela festejando setenta quilos de lixo coletado da superfície do mar ilhabelense por prestativos canoeiros dessas vistosas grandiosas canoas havaianas, bem mais portentosas e “high tech” que as simplórias canoas de madeira caiçaras; essas últimas, de resto, pilotadas por senhores enrugados de muito sol e maresia, uma gente em extinção e sem o brilho, sem a atlética juventude dos havaianados, tão instagramáveis no sonho do tempo de viver, bom, já deu pra imaginar o quê.
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Pena que a fala do Guará empalideceu a foguetório midiático sonhático sucupirano ao trazer pro palco praiano aquela personagem de complicada trajetória e conturbada memória, o ambientalista bolsonarista arrependido estrela nacional renunciante da secretaria do meio ambiente de Ilhabela por causa da sua honestidade. Que em coluna jornalística no poder 360, nos advertiu de que a ilha sonho de tempo de viver nela coleta menos de quarenta por cento do esgoto da cidade e não o trata, jogando-o, praticamente in natura, no meio do canal.
O que significa que por debaixo daquela às vezes verde esmeralda água, uma corrente vomitória de merda duns vinte mil cagantes se alastra sem trégua pois que cagam os cagões e as cagonas dia e noite. Se esparrama muito mais destrutiva e poluidora, feito manada bolsonarista, do que aqueles aclamados miseráveis quilos de dejetos apanhados por cima dela.
Essa sessão fez e entrou pra história ao aprovar a abertura do processo de cassação de um seu vereador, o Raul Cordeiro. Que seus iguais acham mais lobo do que cordeiro.
Defensores ardorosos da democracia e execradores convictos da ditadura militar invejariam a celeridade da câmara ilhabelense em cassar um seu integrante e sonhariam que o mesmo fizesse a câmara dos deputados de São Paulo com um dos seus mais célebres ativistas da destruição do estado de direito: o deputado Eduardo Bolsonaro, reputado por misógino, apologista da tortura, fã fervoroso do golpe de 64 e antidemocrático que conquistou sua cadeira com votação recorde graças a uma eleição feita pelo regime político que ele despudoradamente afronta implacavelmente.
Se há registro de processo da vereança insular de cortar a própria carne em antigas épocas, ele seguramente não habita as informações arquivadas no Google; inexiste caso antecedente. Então essa operosa câmara legislativa que vergonhosamente posou de terraplanista ao proibir a lei de passaporte vacinal que na Ilhabela bela adormecida Nova Zelândia da borda plana era só pra inglês ver, ao estreá-lo, causa agora, novo espanto.
Consta que vereador a ser cassado não o será por ter posado de fraque e cueca samba-canção para as lentes singularmente seletivas da bem sucedida empresa midiática tribuna globeza insular chapa-branca-omo.
Pecado supremo, gritaram melindrosos os colegas do injuriado, foi ele a eles se dirigir sem usar os devidos pronomes e merecidos adjetivos: vossa excelentíssima senhoria, vosso sapientíssimo camarista, vosso nobilíssimo edil e outras puxa-saquistas formas de tratamento que a liturgia desse cargo venturoso não resta qualquer dúvida exige.
O argumento lacrimoso de racismo com o qual se pretendeu, num primeiro momento, enquadrar seu irado desabafo bomba na tribuna da venerável casa do povo na sessão do dia 8 de março, não colou. Entretanto, sobreviveu a ideia de que o abusado ofendeu o eleitorado do vereador José Afrodescentente ( para se ser politicamente correto de modo a evitar cancelamento ).
Todavia, há quem veja na sua atitude não falta de respeito, mas sim, compaixão, esse nobre cristão evangélico crente protestante sentimento abençoado pelos que pautam suas vidas pelo único livro que lei congressual em trânsito quer que seja bíblico. Aliás, cartapácio esse bastante manuseado pela vereança pois que fragmentos do seu rotundo conteúdo, em leitura solene com todos os edis e a sua presidenta perfilados hirtos em pé, sempre abrem e encerram as sessões do templo, quer dizer, da laica casa das leis da princesa defendida com a brilhosa galhardia dum furibundo Moisés de bocarra escancarada a proferir ininteligíveis reprimendas a esse folgazão povo ilhabelense contumaz adorador de bezerros dourados.
Laica casa das leis?
O país, assolado pela ascensão duma infame onda reacionária, carola e fascista, mergulhou num tormento infernal qual esse que infecta dia após dia de morte cagada as profundezas do Canal de São Sebastião. E assim faz letra morta o dever de respeitar a separação, arduamente conquistada, entre estado e igreja. Que o diga a atual câmara ilhabelense que, por reverenciar alucinadamente essa sua cristã bíblia, instituiu um dia do calendário ilhabelense só para ela. Assim desmerecendo não apenas a principesca casa que deveria ser de lei e não de lugar de exaltação da cristandade, mas fazendo pouco caso de todos os cidadãos ilhabelenses que não são cristãos por professarem outra fé ou fé nenhuma. Não causa surpresa que por rezar tantos salmos encenando culto onde reverentes deveriam ser ao dever de fiscalizar e salvaguardar a probidade da administração municipal e não fé religiosa, essa vereança a soldo do povo profano pouco saiba do livro principal desse local do estado laico que esmera em fazer virar teocrático: o Regimento Interno. Pelo jeito, acha que cpi quer dizer comissão parabenizatória de igreja e cp, chacinar pagão.
A sessão do dia 15 de março foi solenemente inaugurada com a leitura do salmo 23:1-5. Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e morte, não temerei perigo algum, pois Tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem.
Talvez a fala irada do vereador Raul Cordeiro tenha se iludido de que se escorava na segurança dessa proteção divina. E por isso, o agora quase cassado vereador falta pouco investiu contra seus pares como fossem eles os vendilhões do templo ( João 2,13-25, raramente lido nos parlamentos nada laicos da pátria religiosa desalmada brasil ).
Porém, como habitamos todos Ilhabela, que apesar de ser rica pra caramba ainda não virou cidade de ouro ( Apocalipse, 21:18-25 ), faltou cajado sagrado, faltou vara santa e sobrou é porrete mundano.
dentro da câmara polar da princesa enclausurada, máscara de proteção facial é “coisa de esquerdista”
E quem com gosto e destemor o desceu no vereador quase cassado tá por pouco foi o prefeito Colucci em performance que encantou o plenário lotado da câmara principesca. Onde uns aqui e outros bem poucos acolá, se mostravam ainda mascarados. Sendo, de imediato, xingados com raivoso desdém de “esquerdistas” pela maioria alegremente desmacarada, respirando todos, perdão, todes, o ar polar do recinto inteiramente fechado. Consagrando então lei o mugido daquele mítico palmito mito acabou porra: “as minoria têm que se curvar pras maioria, talquei?
“Cuidado com os idos de março”, vejam só, disse a César um adivinho e ele não escutou, dando que deu numa shakespeariana curta frase: até tu, Brutus?
O escarcéu aconteceu no dia 29 de março.
Mesmo dia em que a leitura da pauta principiou com um pedido de cassação do prefeito sob alegação de que Colucci “praticou malversação de dinheiro público municipal e negligenciou na defesa de bens pois permitiu o sumiço de algo superior a catorze milhões de reais. Tais fatos são puníveis com a cassação do mandato”. Esse caso havia sido denunciado pelo vereador Raul na sessão que desencadeou o movimento por decepar sua cabeça.
O pedido de cassação do prefeito foi torpedeado por seis a dois. Votos contrários de Raul Cordeiro e Felipe Gomes. A câmara municipal tem meios de averiguar, de investigar suspeitas; disso lembrou o vereador Felipe Gomes, ao mencionar a possibilidade da criação de uma CPI, comissão parlamentar de inquérito, em obediência ao regimento interno.
As porretadas do prefeito se esmeraram em destruir a reputação do Raul e isso foi imediatamente noticiado na globo lava jato tribuna voz da ilhabela ilhabelense. Somente na sessão seguinte, outra que fez história ao aprovar o dia da bíblia, a do dia 5 de abril, ele pôde se defender, apontando a principal inconsistência da invectiva sofrida; qual seja, a de não ter sido gestor do contrato firmado entre a prefeitura e a firma G & A Assessoria, Consultoria e Projetos Ltda., assinado em 2 de maio de 2019 .
O mérito do ataque foi o de colocar em foco a questão fundiária na cidade. Ela é complexa e para que pudesse ser abordada em profundidade, seria importante que não ficasse restrita à regularização fundiária; a obtenção de posse legal de um imóvel irregular.
Pra quem percorre a orla de Ilhabela olhando mar e montanhas, o lugar é bonito e melhor seria se houvesse um trabalho eficiente de zeladoria do espaço urbano. Mas se quem admira embevecido essa paisagem natural, tomar coragem e entrar fundo pelas quebradas a ponto de escalar morro e rolar em grotão, encontrará habitações mal planejadas feitas ao arrepio das normas mais comezinhas do urbanismo. Agrupadas em construções desconjuntadas num emaranhado de equilíbrio instável, desrespeitam a arquitetura e a engenharia que os ricos, tão prodigamente bem empregam em suas mansões de sonho de tempo de viver ilhabela. Diante desse choque de adversidade, sabendo da condição financeira privilegiada da cidade, o turista estarrecido vai se perguntar: caraca, que raio de lugar tão rico é esse que deixa seus moradores mais pobres na merda?
Pois é. Com tanto dinheiro, Ilhabela bem que poderia mitigar essa situação de grande fragilidade de parte da sua população, principalmente aquela em situação de vulnerabilidade social. Seria possível regularizar algumas dessas comunidades, que podem mesmo, desgraçadamente, reprisarem tragédia semelhante a que ora assola Ubatuba, Paraty e Angra dos Reis. Para torná-las melhor habitáveis e seguras, seria preciso demolir as casas mais perigosas, reformar outras, alargar as ruas, conter encostas, criar aéreas públicas voltadas ao esporte e à cultura realizando um trabalho de urbanismo social que as fortalecesse
essa paisagem idílica que ficaria bem em banner publicitário do “tempo de viver ilhabela”,
é proibida pro populacho; só rico a desfruta
Os ricos constroem onde querem; em geral, nos locais onde a vista é magnífica e aí pouco importa que se trate de costeira ou pirambeira. Não faltará cálculo seguro de engenharia e construtora qualificada pra edificar seus palácios. Pouco importa que o façam se apropriando de costeiras, de áreas de preservação, margens de rios e praias, tendo depois o desplante de interditar seu acesso aos demais que não pertencem a sua classe. Já os pobres demais, vulneráveis sociais, outra história vivem, ou melhor, suportam. Sem condições de alugar casa decente posto que inexiste na ilha imóvel de aluguel anual e quando algum aparece, seu valor de locação mensal é impagável pra essa gente, a ela resta alugar quartinho em cortiço ou construir às escondidas nos piores terrenos. Geralmente, os mais inseguros por estarem em áreas de risco; essas que corriqueiramente desabam e deslizam destruindo tudo pela frente e matando pobre. Porque, casa de rico, por bem planejada e feita, raramente cai em chuvarada.
Olhem isso, ricos! Perigo, Perigo!
A lastimável história desse crescimento atabalhoado, desordenado e injusto no litoral, nos conta com conhecimento de causa, o jornalista João Lara Mesquita do Mar Sem Fim, destinatário de um processo judicial impetrado pelo prefeito Colucci.
Escolher atender as demandas dos mais pobres e indo além, contrariar as do ricos, dos especuladores imobiliários, dos aventureiros e dos farsantes do turismo, é uma escolha política que exige coragem e alinhamento ao projeto de criação de cidades sustentáveis e inclusivas. Ilhabela tem ignorado essas pautas por indigestas e agora, parece mais tentada a gastar dezenas de milhões no alargamento artificial de suas praias , vivendo o tempo de sonho não de ser ilhabela, mas o pesadelo de virar essa aberração de concreto armado dubaiana que é o balneário Camboriú.
Abrindo um parêntisis, é importante lembrar que a conquista história que foi a de manter nossas praias inteiramente públicas está sob forte ameaça do Projeto de lei 4444/2021 . Pode acontecer de se concretizar a abominação da privatização da areia, estimulando transformar não só Angra numa Cancún cheio de bregas resorts donos de praia, mas outros tantos locais ainda lindos e livremente acessíveis, democráticos, do litoral brasileiro; praias ilhabelenses incluídas.
a câmara municipal de Ilhabela
Porrete pesado ao do prefeito desceu a presidenta da câmara:
“Existem algumas hienas e abutres que estão se aproveitando desse momento pra fazerem, pra terem um protagonismo vil e perverso né, nas redes sociais, se inflamando contra a instituição câmara municipal.
Quem tá ganhando com isso, são os famosos auditores de sofá, aqueles que nada fazem e nada contribuem, sequer pros seus familiares, apenas ficam atrás de uma tela de computador falando mal da vida alheia e daqueles que tão tentando trabalhar.”
Hienas, abutres, auditores de sofá são adjetivos pesados para munícipes. Por adjetivos muito menos ofensivos a câmara que a presidenta preside abriu processo de cassação contra o Raul Cordeiro. É uma atitude, no mínimo temerária, ofender aqueles a quem a casa das leis por ela presidida, tem o dever, institucional, de servir.
Uma fala da presidenta, porém, abordando o processo de cassação do vereador, teve alguma razoabilidade:
“Ninguém ganha nesse processo; todos vão sair perdendo independente do resultado.”
Todavia, uns hão de perder muito mais do que outros. Perderá a população de Ilhabela. Poderá, entretanto, perder ainda muito mais, a câmara municipal de Ilhabela ao fazer vista grossa e ouvidos moucos ao clarão de incêndio e à barulheira de tribuzana das denúncias do vereador Raul e do ilhabelense Paulo da Boite Oliveira.
Munícipes que não merecem ser alcunhados como hienas, abutres e auditores de sofá, munícipes que passam longe das redes insociáveis e munícipes que ruminam nelas grudados, munícipes de todos os extratos sociais, munícipes desde boçais a eruditos, munícipes de todos os matizes ideológicos, munícipes de variados credos religiosos, munícipes sem credo algum, todos eles, todas elas, ao ouvirem o apócrifo áudio duma suposta gritaria do prefeito mandando vereadores votarem contra a aceitação do pedido de cassação do seu mandato, como se recitasse um poema concretista, estão atônitos e se perguntam, se verossímil for a gravação, qual seria o adjetivo que caberia ao lugar que a vereadora preside.