Tumultuosa foi a reunião virtual do conselho municipal de cultura para ouvir a apresentação do prefeito sobre o projeto de readequação do teatro e centro de convenções de Ilhabela.
Em sua explanação, disse que o projeto primordial era um gol básico e o novo, será um bmw v6 turbo. Esse golzinho é hoje mera sucata enferrujada feito as ruínas dessa obra embargada pelo poder judiciário baseado em denúncia fundamentada em relatório de engenharia encaminhada ao Ministério Público pela Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Ilhabela. Obra essa que consumiu mais de dois milhões, valor desatualizado, datando de outubro de 2014, quantia suficiente pra comprar uma frota de dezenas de gols a ponto de causar congestionamento em frente ao prédio falido. As brilhosas placas telhas de alumínio que tentam, inutilmente escondê-lo, exibem a pichação “vergonha” em letras garrafais como uma escrita indelével, inapagável no próprio corpo da cidade adoecida, gritando de dor e de revolta para os surdos que passeiam na avenida.
A câmara municipal de Ilhabela na época soube com galhardia cumprir seu dever funcional; tornou-se antológica a fala do vereador Sampaio em sessão de 11 de novembro de 2014: “nós somos vereadores; nós fiscalizamos o poder executivo, não tem mais ninguém pra fazer isso”. Foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo trabalho resultou num documento com poder de melhor esclarecer os execráveis acontecimentos.
O power point com croquis do bmw, quer dizer, teatro e centro de convenções exibido com pompa nessa reunião do dia 7 de fevereiro era simplório e trazia uma perspectiva arquitetônica oblíqua da fachada do teatro e centro de convenções “readequado” que de imediato lembrou outra, feita pela Inplenitus, que apresentava como ficaria a entrada da Cocaia depois da obra de reurbanização. Obra que se arrasta gastando milhões que nem mais são contabilizados em sua placa de realização carcomida pelo tempo e pelas intempéries, com o evidente demérito de fazer completamente o contrário do que recomenda o novo urbanismo a ponto de poder se prestar a ilustrar nos seus manuais, como corromper a saúde duma cidade.
cadê o morrinho e mansão que estavam atrás?
o Morro do Espinho foi terraplanado
O dado comum desses desenhos era que mostravam um lugar outro, de fantasia e não o verdadeiro: na Cocaia, o Morro do Espinho fora inteiramente terraplanado, assim como o foi o morrinho menor, atrás do edifício bmw, perdão, teatro e centro de convenções, com o agravante de ter sido demolida a mansão que estava plantada logo atrás.
No caso da Cocaia, o lugar real “reurbanizado” entra no rol de práticas antigas, lesivas à mobilidade urbana ativa e desrespeitosas com o Plano Diretor de Ilhabela, – a de comer calçadas, com a diferença de que, em vários locais do bairro, mais do que parcialmente comidas, elas foram inteiramente eliminadas. O Ministério Público foi alertado, mas marcando diferença em relação ao histórico processo do Teatro e Centro de Convenções, decidiu pelo arquivamento da denúncia.
Retomando.
O projeto do teatro e centro de convenções antigo foi classificado pela combativa Associação dos Engenheiros e Arquitetos da época, como um “peru no pires”. O projeto atual de “readequação” não se distancia dessa imagem surreal e o que logo se percebeu nessa fachada AutoCad, dum autor desconhecido, com carrões pretos, talvez bmws, foi o uso dessas madeirinhas oculta encobre esconde empasta empeteca prédio feioso que viraram moda pela ilha; exemplos mais à mão, o caixote caixa forte do tio Patinhas do Dr. Osvaldo transformado em centro de referência da mulher e a escola Gabriel da Vila transformada em centro cultural com um rotundo Belisário metalizado aboletado afundando na entrada duma recepção tão mal planejada que é até muito maior do que os indigentes espaços expositivos e maior também que o falecido cinema que, de tão mal feito, se foi sem nunca se ter visto uma única película. O “readequado” “peru no pires” desta feita, parece ter se transformado num “peru no pires amadeirado”.
E como gosto se discute quando se trata de arquitetura, vale o registro da impressão inicial, não dum teatro, mais dum crematório levemente parecido com o da Vila Alpina; isso, não querendo fazer mau juízo desse projeto de 1974 que é adequado para a finalidade da construção a que se destinou, a delineando com sobriedade e descrição.
A entrada com pé direito duplo lembrou a de hotel de grão fino brega misturado com balcão estiloso de bartender. Aí, relembrando o desabafo do secretário demissionário do meio ambiente, nasce a pergunta se o povo pobre da ilha se sentiria confortável nesse ambiente elitizado e indo além, se ele teria realmente assento na plateia sem sofrer o bullying corriqueiro que experimenta sempre que à praia vai e é confundido com os execrados turistas de um dia pela operosa indústria é tempo de viver Ilhabela turística. Viajando pelas plantas baixas e cortes, o que se constata é a inexistência dum espaço expositivo, comum em construções dessa envergadura, ainda mais a esse custo estimado próximo ao de duas dezenas de milhões. Para exemplificar sucintamente, quatro prédios. Primeiro, um bem aí ao lado, bastando atravessar o canal: o teatro de São Sebastião. Sua fachada tem algum encanto enquanto o encanto maior está na paisagem a sua frente; tem lugar para se montar exposição e se não as montam, o problema não é da construção, mas da municipalidade que o subutiliza. Percorrendo a Hipólito, chegamos a Caraguá, no Mário Covas, prediozão de desenho abrutalhado meio parecendo showroom de automóvel de novo rico com duas enormes máscaras gregas de metal dependuradas em postes o flanqueando, exercitando igual papel ao do furibundo Moisés ilhabelense fincado no jardim da Câmara, qual seja, de assustar as criancinhas com medo de bicho papão e de quebra, afugentar o povão. Lá existe um grande espaço a ponto de ter abrigado os salões de arte da cidade, expondo dezenas de obras. Olhando para o litoral sul, temos o teatro Brás Cubas em Santos, com uma generosa área expositiva num prédio modernoso todo de concreto e vidro. Subindo a serra chegamos a Jundiaí, onde existe um belíssimo teatro construído em 1911, o Polytheama que, de tão bonito na sua mais que centenária eclética arquitetura, foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. Quem o olhar à primeira vista pode achar que ele não tem área para exposição, mas ela está lá, integrada com o edifício, na sua lateral e, marcando diferença em relação a ele, é uma construção de espírito contemporâneo, concreto à vista, iluminação zenital: a Galeria de Arte Fernanda Perracini Milani com extensa propagação de alta qualidade o ano inteiro, selecionada por edital.
o teatro do vizinho, como o da ilha, sem vaga de estacionamento
o Mário Covas, esse com vaga de estacionamento
o Brás Cubas de Santos, com generosa área para exposições
esse é o belo e mais que centenário Polytheama
e nele interligada, a modernosa Galeria de Arte Fernanda Perracini Milani
No teatro e centro de convenções da ilha, porém, não vai existir lugar para pendurar quadros ou montar instalações e aqueles que gostariam de os ver, terão de se contentar em ficar olhando para o mundo real, quem sabe para as cercanias do prédio desgracioso, se divertindo maldosamente dos apuros por que passam os que chegam de carro procurando nervosos vagas para estacionar nas proximidades no meio dum embolado bolo de brilhos metálicos com negros e cinzentos bmws numa desafinada sinfonia dodecafônica com ronco de motores e berraria de buzinas.
Expectador isento e atento desse encontro na internet poderia, ao acompanhar essa apresentação, estranhar que, aparentemente, o pacote fosse jogado sobre a cara do conselho inteiramente pronto, projeto fechado sem paternidade reconhecida com a única informação de que a técnica construtiva iria se aproveitar das ruínas milionárias através de reforços estruturais propostos pela firma Falcão Bauer e pelo engenheiro Júlio Ferraz, quando, para uma emblemática obra de tamanhos milhões tantos de custo, recomendaria a prudência, que fosse aberto um concurso público para a seleção do melhor projeto. Exemplificando com economia verborrágica e usando exemplo recente e próximo, o do prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora, logicamente, construção destinada a formar arquitetos e urbanistas. Para construí-lo foi lançado concurso nacional que logrou selecionar o mais bem avaliado dos projetos democraticamente inscritos. Esse belo e complexo projeto custou aos cofres públicos, setenta e cinco mil reais.
a belezura que só podia mesmo ser um prédio de faculdade de arquitetura e urbanismo vencedor de concurso
o prefeito grita, ofende e, por um instante, sai de cena
Desde a eleição de Bolsonaro, o homem mediano que chegou ao poder, normalizou-se na política nacional, a truculência, a bestialidade. O bom exemplo da simpatia e carisma dum Juscelino Kubistschec, da retidão moral dum Mário Covas, da lucidez duma Marina Silva, da compostura dum Tancredo Neves, do cerimonialismo dum Fernando Henrique, da cultura dum San Tiago Dantas, isso tudo, tão belo e inspirador, caiu em total desuso e escandaloso descrédito.
Talvez seja esse fato desabonador a justificativa para que tão poucas e quase inaudíveis vozes tenham se levantado em defesa da presidente ultrajada. O fato de ser mulher agravou a atitude arrogante, autoritária e destemperada do alcaide, colorindo-a feito ato de misoginia.
E fosse outra a identidade de gênero da pessoa molestada, ainda assim o destempero seria intolerável. Poderia, forçando a barra, passar batido numa roda de truco ou numa confraternização de bêbados de botequim, mas numa reunião oficial da municipalidade tratando dum investimento de tamanha envergadura, com potencial de interferir seriamente no futuro da cidade, jamais.
Que esse entrevero acontecesse num outro conselho com igual desdobramento, sem que fosse a reunião imediatamente interrompida e cancelada sob unânime protestos após o ultraje perpetrado, a gente até poderia, enfraquecendo um bom tanto a razão, entender. Mas num conselho de cultos?
Desde, com alguma sorte, o final de 2016, Ilhabela poderia ter funcionando esse seu teatro e centro de convenções, não tivesse sua construção sido embargada em 2015, penalizando severamente dois servidores da secretaria de obras e a construtora. A ação civil pública que resultou na paralisação das obras foi por improbidade administrativa.
Tivesse sido a governança da época íntegra e competente e teríamos pronto o teatro e centro de convenções de Ilhabela valente golzinho básico há muitos anos rodando. Não seria o bmv v6 turbo, mas carro por carro, chegariam os dois, afinal, no mesmo destino e isso é que importa. Imaginem quantos eventos culturais teria apresentado, quantas peças dirigidas pelo genial Carlos Eduardo Martins encenadas, estimulando a formação de atores, atrizes, iluminadores, cenógrafos, enfim, toda uma enorme gama de profissionais da ribalta. Quanto Ilhabela não teria se deliciado e quanto não teria, culturalmente, crescido.
O prejuízo é incomensurável.
Vale a lembrança de que naquela malsinada ocasião, o chefe do executivo era o mesmo que agora transformou essa reunião de conselho num palco de gritaria e xingamento.
Nesses nossos obscurantistas tempos da política brasil pária odiado brasil, o exercício da autoridade se confundiu com a prática do autoritarismo. Totalmente contrária à conquista dos conselhos que se inseriram num plano maior, o do sistema nacional de cultura, com o propósito de democratizar a criação da cultura e potencializar a sua acessibilidade, de maneira que a maior parte da população a desfrutasse e nesse desfrute, consolidasse a sua cidadania. Uma cidadania que valorizasse o desejo de salvar, mas repudiasse os que se autodeclaram salvadores da pátria, da família, da tradição, do escambau. Nas palavras de San Tiago Dantas: “querer salvar é sublime; julgar-se um salvador é ridículo”.
Contabilizados os votos, o placar pela aprovação da proposta do projeto de readequação padrão power tabajara point foi dum massacrante 7X1. O mesmo inesquecível e vergonhoso placar da retumbante derrota do Brasil pra Alemanha na semi final da copa do mundo de futebol de 2014.
Tá certo que quase a metade dos votos poderia ser mesmo de cabresto por vir de servidores públicos que pensam primeiro no cargo e salário do que na cidade. Mas e os demais, aqueles da sociedade civil? Que raio de gente é essa que se declara da sociedade civil, representando os artistas, as comunidades caiçaras isoladas e o movimento negro e não acha conveniente ter a possibilidade de refletir melhor sobre a polêmica proposta por apenas mais míseros cinco dias úteis antes de dar seu parecer? Fizeram feio; fizeram horrível; fizeram VERGONHA tão grande quanto a que picha o metálico tapume na avenida e não merecem citação no inspirado pasquim poema de Kiko Kardial que brilha com graciosa ferocidade crítica, depois dos cinco minutos iniciais da reunião. Nos dias seguintes, nas redes ignóbeis, houve a princípio um rebuliço; logo substituído por preocupações outras como a necessidade do uso da linguagem neutra pelos cultos de Ilhabela. Uma carta de repúdio veio a lume no dia 18 de fevereiro.
E justamente no dia seguinte ao conflagrado encontro internético, os jornais chapa branca lambe botas estamparam eufóricos a notícia: “novo centro de convenções de Ilhabela é aprovado em reuniões do conselho de turismo e de cultura”.
Assim mesmo, sem menção alguma ao teatro, informando com absoluta clareza para que se presta a nova milionária obra: à indústria, sempre ela, do turismo. A cultura que se dane.
E como ela se dana.
Do orçamento aprovado em 2021 para a área da cultura de Ilhabela, secretaria e FUNDACI, foram alocados R$ 12.074.900,00 e gastos R$ 4.351.164,21. O que significa que R$ 7.723.735,78 deixaram de ser investidos, lembrando o caso agora amplamente divulgado da verba para contenção de encosta de Petrópolis, gasta apenas pela metade.
Imaginem o que essa cifra milionária não teria feito se por deliberação democrática da sociedade, fosse aplicada com probidade e competência … Poderíamos ter vivido uma verdadeira revolução social na cidade, com a cultura se espalhando pelas ruas, pelas praças, pelas escolas numa ocupação que não quer nada industriar, mas deleitar, informar, civilizar para que se criem munícipes que querem sim salvar, mas que nunca mais se prestarão ao papel infame de claque ordinária daqueles que se autointitulam seus salvadores.